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Exercício de Transcriação
CD1 / 01 : 01 5’37’’ a 7’39’’
Essa transcrição é produto das oficinas de escuta do Falatório de Stella do Patrocínio, conduzidas em parceria com o Projeto de Extensão Direito à Poesia, na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu, durante o segundo semestre de 2024, com o objetivo de contribuir para a nova transcrição coletiva do Falatório.



Comentário de Ana dos Santos
Então, o da Stella, eu fiz assim: eu demorei pra pensar, eu demorei pra pensar. Porque é muito difícil a gente narrar uma pessoa que a gente não tem muita informação. Porque, na verdade, é difícil; mesmo com informação, é difícil de interpretar a pessoa.
E ela, ela é uma pessoa muito doce, sabe? Quando eu fui ler um pouco da história dela e o áudio dela, ela era muito boa... E eu não quis fazer nada, tipo, nada de... E nem quis ter a ousadia de tentar narrar ela da forma que eu entendi, sabe? Porque é muito sofrimento carregado ali. Só que, no meio do sofrimento, ela... ela dá risada, ela dá... ela fica feliz com a mulher...
E eu, no meu ver, assim, eu entendi que naquele hospício ele é muito branco, né?... Ele é muito branco. Nas falas, eu coloquei a fala da mulher aqui em verde, porque eu acredito que eles tinham esperança. Assim como nós, quando vem algum advogado, juiz, a gente fica: "Ah, meu Deus! A minha esperança está ali. Tem que falar com a pessoa, vou falar com ele, e eu vou tirar as minhas dúvidas, eu tenho que falar com a pessoa."
Então, a esperança da gente já morre, porque eles não estão fazendo nada com isso. Porque um dia... a gente... me perguntaram, assim: "Algum dia os direitos humanos fizeram alguma coisa por vocês, aqui dentro?"... Aí eu pensei: cara, faz 8 anos que eu tô aqui e é verdade, só vejo eles entrar e sair. Mas eu não vejo eles trazendo a solução.
Essa mulher precisava, na minha opinião — eu não sei certo — mas eu acho que ela precisava de um socorro, de alguém que resgatasse ela de lá. Não era justo ela estar lá. Então, ela via esperança nas perguntas da mulher. Mas a fala dela é em preto. Por ser uma mulher negra, né... trazer, assim, essa fala... sofreu racismo, eu acho, que ela sofreu violência física, mental... essas coisas muitas eu escrevi em preto.
Só que daí ele foi sumindo, a fala foi sumindo, a da mulher eu deixei bem fino... e acabei com o final dela: eu tenho vontade de ganhar dinheiro, mas de produzir, nunca. Então, eu deixei bem apagado mesmo. Eu quis deixar aqui só esse cartão... porque é a fala dela, bem simples. Mas é uma forma que eu entendi... que todas as pessoas entendem hoje.
Comentários e discussões surgidos durante as oficinas.
Além das transcrições compartilhamos trechos de comentários e discussões surgidos durante as oficinas.
Mario: Vamos acompanhando o texto. Quem é Stella, então?
Mulher 1: Uma preta.
Mulher 2: Uma pobre e negra.
Mario: Sim… e o que aconteceu com ela?
Mulher 3: Ela foi encarcerada num manicômio.
Mario: Isso, exato. E o que tem a ver com poesia?
Mulher 3: O modo de vida que ela sofreu, enquanto ela tava presa, transformou-se em poesia.
Mario: Transformou-se em poesia… aham. Teve um livro que é mencionado aí, que é Reino dos Bichos e dos Animais é o Meu Nome, que foi feito a partir de palavras dela. E esse então que foi lido, esse poema, são palavras dela.
Mulher 4: Por isso que tá, começa com cemitério, defunto e termina com animal… nada a ver com nada.
Mario: Nada quê?
Mulher 4: Nada a ver com nada. Ela tava no manicômio quando escreveu isso.
Mario: Mas que interessante o que você disse. Como começa? Cemitério, defunto e termina com animal.
Mulher 4: É…
Mario: Você acha que não tem nada a ver com manicômio?
Mulher 4: Não, porque os animais representam o verde da natureza, a vida. Aí ela começa com cemitério, defunto, asilo?
Mulher 5: Ah, eu acho que ela (inaudível) no hospício, né… que ela viu os bicho.
Mulher 4: Ela tá doidona, eu acho… ela é louca! (vozes sobrepostas) Ela não se adaptou ao lugar.
Mulher: É que nem aqui, a gente não vê só presa. A gente vê presa e animal.
Mulher 4: Mas aonde que ela viu dinossauro? Ela é louca!
Mulher 6: Ué? Aqui eu posso falar pra pessoa um dinossauro.
Mulher: É diferentes pessoas (inaudível) aqui pode ter o animal que você quiser.
Mulher: O dinossauro poderia ser o Bonatucho.
Mulher: Oh, para com isso.
Mulher 7: Acredito que ela retrate uma pessoa dinossauro… ele é uma criatura agressiva, forte, imponente, então tipo assim, vamos supor a Princesa, ela é um dinossauro.
Mulher: Sabia que você ia olhar pra mim.
(Risos)
Mulher 7: Aí vamos supor, o outro que ela fala, a girafa, uma pessoa alta aqui que pode parecer ameaçadora pelo tamanho, mas que…
Mulher: Alta e magra…
Mulher 7: Mas que não é… acredito que ela pode retratar as pessoas dessa forma, porque lá tem de tudo. Parece um zoológico.
Mulher: Melhor eu apelidar as guarda do que apelidar as presa…
Mario: Sueli, você que falou aquela frase que aqui se correr vira asilo e se cercar vira hospício. Então.. sim, pô.
Sueli: É verdade… aqui é um circo.
Mulher: Ontem… você pode ser palhaço ou pode ser louco.
Sueli: Se cercar vira hospício, se cobrir é um circo.
Mario: Interessante a discussão, porque…
Mulher: Mas, Mario, aqui parece um hospício, sabe por quê? Que nem esse aqui (inteligível) quando acaba a luz fica gritando águia.
(vozes sobrepostas)
Mulher 4: Não, outro dia (inaudível) por que a gente não pode entrar? “Tem visita” Eu falei: visita? Daqui a pouco sai um monte de gente da galeria… eu falei assim: eles tão achando que isso aqui é o quê? É zoológico que eles vem visitar? Ela “por que zoológico?” Porque os bicho (inaudível) fica tudo na cela né? Tudo trancado. Aí eles vêm visitar a gente? Tão achando que é zoológico aqui.
Mulher: A gente pensa até no que os cachorrinhos daqui da cadeia pensam da gente, porque eles andam pra lá e pra cá e a gente tá presa.
Mario: Olha que legal, isso dá uma boa história, hã?
Mulher: Se você soubesse o que esses cachorro faz…
Mulher: Eles ficam num entra e sai… aí eles olham pra nossa cara e tipo ficam “eu vou e você não vai me pegar, você não me pega”.
(vozes sobrepostas)
Mulher: O jogo virou… é, o jogo virou. Aqui os animais tão soltos e nós tá preso… será que eles são os animais ou os animais é nós? Eis a questão ser ou não ser? Quem é o animal da história agora?
Mario: Essa é uma boa! E tem um detalhe que não estava… não tá no texto, mas teve uma saída no hospício que as mulheres foram levadas pra onde? Foi uma loucura… que depois as pessoas que fizeram isso ficaram pensando, “mas como a gente é burro né?” Porque elas levaram pra onde? Para o zoológico, mas com animais presos né? Como estavam elas. Então, uma experiência que supostamente seria prazerosa, foi uma tortura, porque elas se sentiram muito identificadas com a situação dos animais. Então, olha que fineza de discurso que pode parecer um discurso muito delirante, mas que também é o discurso da poesia. A poesia não fala nas palavras que necessariamente, com as expressões que a gente tem. A gente encontra imagens muito fortes que depois com a experiência vivenciada no lugar, nesse caso no hospício. Não por acaso, como vocês mesmas apontam, é comparado com o cemitério. O presídio não é comparado com o cemitério também muitas vezes, né? Um lugar em que as pessoas estão nessa condição que não é da vida plena, digamos pelo menos assim.
Mulher: É! A gente tá o dia todo aqui. Parece uma UTI… de corpos.
Mario: Então… ah, você falou de ser uma sobrevivente né?
Mulher: Sim.
Mario: Então… legal, legal… vamos continuar então.